Considerações sobre a publicidade dos atos judiciais e administrativos e a exposição indevida da ima
- Delgado Kardos
- 16 de set. de 2020
- 3 min de leitura
A estória da menina de dez anos, natural do Espírito Santo, estuprada pelo próprio tio, cuja relação de abuso ocasionou uma gestação, trouxe à tona na sociedade, além do grande alvoroço causado pela imprensa, o desejo de melhor compreender as regras contidas no Estatuto da Criança e do Adolescente, conhecido pela sua abreviatura “ECA”.
Preambularmente, comentando-se o caso concreto, consigne-se que o aborto praticado pela menor, ora violentada, fora devidamente autorizado pela Justiça do Estado do Espírito Santo.
De acordo com o artigo 128 do Código Penal, inciso II, "não se pune o aborto praticado por médico se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal".
Entretanto, o Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (HUCAM), vinculado à Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), se negou a realizar o procedimento, isto porque a criança já estaria com cinco meses de gravidez, fato que impôs a menor a busca de auxílio em outro estado, restando enviada à Pernambuco, enquanto aguardava decisão judicial autorizando o procedimento.
O juiz da Vara de Infância e Juventude da cidade de São Mateus determinou, através de despacho, que a criança fosse submetida ao procedimento de melhor viabilidade para a preservação da sua vida.
Ocorreu, todavia, uma reviravolta que tomou conta do caso em questão, na medida em que a Sra. Sara Giromini, conhecida como "SARA WINTER”, usou suas redes sociais para divulgar o nome da menina e o endereço do hospital onde ela estaria internada aguardando a realização do procedimento já autorizado de aborto.
A Sra. Sara Giromini, ao expor publicamente informações sigilosas a respeito de “criança e/ou adolescente” vítima de bárbaro crime, em suas redes sociais, ocasionou a comoção popular de grupos de religiosos à favor da vida, que se amontoaram às dezenas em frente do hospital em questão, de forma que essa conduta, além de violar o “ECA”, também tem sido interpretada como incitação de violência.
A esse respeito, e finalmente entrando no cerne da questão que se propõe discutir, é possível afirmar, em linhas gerais, que "crianças e adolescentes", nos termos dos artigos 17, 18 e 70 do ECA, Lei n. 8.069/90, devem ter, sempre, a imagem preservada, configurando dever de todos zelar contra a exposição vexatória ou constrangedora dos mesmos.
Ademais, o Estatuto da Criança e do Adolescente normatiza o segredo de justiça em vários tópicos, como ocorre, por exemplo: (i) no artigo 27, que trata do estado de filiação; (ii) nos artigos 143 e 144, que tratam da prática de atos infracionais; (iii) no artigo 206, que dispõe sobre a possibilidade de intervenção no processo por quem tenha legítimo interesse; e (iv) no artigo 247, que pune com multa quem divulgue por qualquer meio de comunicação, ato ou documento de procedimento policial, administrativo ou judicial relativo à criança e ao adolescente a que se atribua ato infracional.
Pode se dizer, entretanto, que aparentemente a Lei n.º 8069/90 padece de omissão por não definir explicitamente que todos os atos envolvendo a criança e os adolescente estariam automaticamente salvaguardados pelo segredo de justiça, dando ao operador do direito e ao jurisdicionado a falsa impressão que apenas uma especifica e determinada gama de procedimentos afetas às crianças e adolescentes estão sujeitas à sigilo.
Obtempere-se, nessa linha, que a publicidade dos atos e procedimentos judiciais e administrativos é, na forma preconizada pela Constituição Federal, sempre a regra. Entretanto, toda vez que a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem, tanto no âmbito judicial como administrativo, a publicidade do ato deve ser restrita.
Especificamente no que tange à criança e ao adolescente, tanto o ECA, em várias de suas passagens, tanto o artigo 227, "caput", da Constituição Federal, determinam que é dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar dentre outros direitos, irrevogável respeito à dignidade e a contrariedade ao constrangimento ou exploração vexatória de sua imagem.
Enfim, assentadas essas premissas pode se afirmar que a divulgação, quer seja pela imprensa, quer seja por meio de redes sociais, com a ocorrência de publicidade de autos (judiciais ou administrativos) que cuidam dos interesses da criança e adolescente, os colocam diante de inconteste constrangimento, podendo acarretar estigmatização dos mesmos, e potencial futuro cercado de discriminação, de sorte que conclui este ensaio pela ampliação e aplicação de sigilo para todos e qualquer procedimento, judicial ou administrativo, que cuide do interesse de crianças e adolescentes, independentemente de expressa previsão legal.
Francisco Spínola e Castro é advogado especialista em Processo Civil, com ênfase em Direito de Família e Contencioso Civel
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